Missão das Misericórdias
Quem melhor definiu o sentimento da misericórdia, foi sem dúvida alguma, S. Tomás de Aquino, analisando exaustivamente o que a distingue de piedade, de beneficência, de esmola e de caridade com que em geral é confundida, terminando por dizer que a misericórdia é toda a religião cristã, quanto às obras exteriores; mas o sentimento íntimo de caridade que nos une a Deus vai ainda além do amor e da misericórdia para com o próximo. A caridade torna-se semelhante a Deus pelo afecto que a Ele nos une; é pois preferível à misericórdia que nos torna semelhante a Ele apenas pelas obras.
As catorze obras de misericórdia, todas expressas nos evangelhos, são a síntese das virtudes cristãs; dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar pousadas aos peregrinos e aos pobres, curar os enfermos, visitar os encarcerados e os doentes, vestir os nus, enterrar os mortos, dar bom conselho, castigar com caridade os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do próximo, remir cativos e rogar a Deus pelos vivos e pelos defuntos.
Não se pode, nem se deve, falar da história das Misericórdias, sem primeiramente, envolver o nome da Rainha Da. Leonor, mulher de D. João II, nascida em Beja em 2-05-1458 e falecida em Lisboa em 17-11-1525. Senhora que herdou de seus Pais o gosto pelas letras, o amor ao estudo, a alma ardente, a abnegação pelos que sofriam, a firmeza de carácter e a persistência na acção, teve uma educação esmerada, no meio intelectual da Corte de seu sogro e Tio D. AfonsoV. Para além destas excelsas qualidades era culta, piedosa e inteligente, e de vistas largas. A sua educação foi preparada e feita primorosamente. Foi uma princesa perfeitíssima, mas quem marcou a sua forte personalidade, foi o pensamento luminoso de S. Tomás de Aquino e tudo isto deve ter influído no espírito culto da Rainha Da. Leonor para tomar a iniciativa de dar alento à velha confraria da Nossa Senhora da Piedade da Sé de Lisboa, dando-lhe um novo compromisso e estimulando esforços e dedicações adormecidas.
O compromisso da Misericórdia de Lisboa, aprovado em 1498 por Da. Leonor, quando foi Regente do Reino na ausência do Rei D. Manuel I por se encontrar em Castela, é notabilíssimo modelo, ainda hoje de regulamentos no género, se for devidamente actualizado e adaptado às circunstâncias de cada Misericórdia local.
O principal colaborador da Rainha Da. Leonor na reorganização da confraria da Misericórdia de Lisboa, foi Frei Miguel Contreiras, natural de Valença, onde nasceu em 1431, vindo para Portugal em 1481, tendo falecido em Lisboa em 1505.
A confraria instituída em Agosto de 1498 na Sé de Lisboa por Da. Leonor e por iniciativa de alguns bons e fiéis cristãos tinha a invocação de Nossa Senhora, a Madre de Deus, Virgem Maria da Misericórdia e o povo começou a conhecê-la pelo título abreviado de “Misericórdia” ou de “Santa Casa da Misericórdia”.
Os fundadores da confraria da Misericórdia, instituída em Lisboa, foram, segundo a tradição, João Rodrigues Ronca, Coutim do Paço, (flamengo) João Rodrigues (cerieiro) o livreiro Gonçalo Fernandes, um valenciano e com eles Frei Miguel Contreiras. Os irmãos da confraria eram cem, metade deles artífices, e outra, formada de pessoa da melhor condição. (Nobres, incluindo o Rei D. Manuel e a Rainha Da. Leonor.)
Regia-se a confraria por um compromisso notável em que vinham minuciosamente determinadas as atribuições da instituição e dos diferentes oficiais.
Superintendia nela um Provedor, eleito entre os irmãos nobres e que tinha de ser exemplar em tudo, homem honrado, de autoridade, virtuoso, de boa fama e muito humilde e paciente, dada a psicologia das necessidades, tão inclinada a revoltas, injustiças e maus juízos naquela época.
O Provedor era ajudado por doze conselheiros ou Oficiais sendo todos eleitos anualmente com a maior consciência, devendo metade ser oficiais mecânicos e outra metade pessoas de melhor condição.
O Provedor e os seus conselheiros escolhidos entre os cem irmãos eram quem administrava a irmandade e confraria auxiliados pelos outros quando era necessário, por determinação do Provedor.
Havia três Assembleias gerais dos irmãos, uma em 2 de Julho, para a realização das eleições, outra para a irmandade tomar parte na procissão dos penitentes; a terceira para no dia de Todos os Santos se incorporarem na procissão que, por especial privilégio ia junto da forca de Santa Bárbara buscar os corpos dos enforcados para sempre, isto é, os que pela gravidade dos seus crimes, os seus corpos eram deixados na forca depois de terem morrido e ali ficavam até a corda apodrecer. Este acto de misericórdia da instituição era particularmente impressionante chegando mais tarde a ser das suas atribuições o fornecer cordas para os enforcamentos, ficando na tradição que tais cordas eram embebidas em água forte para ficarem mais frágeis e os cadáveres ficarem menos tempo suspensos facilitando-se por caírem, os seus enterros.
Aos conselheiros eram distribuídos os cargos de escrivão, mordomo da Capela, visitadores dos hospitais e das casas onde houvesse doentes pobres, das cadeias, de todos e quaisquer necessitados, em especial pobres envergonhados, de arrecadores de esmolas, rendas, foros, testamentos, etc.
Independente dos conselheiros havia irmãos pedidores de pão e mordomos, cuidando da remissão de castigos, de compra e pagamentos vários.
A confraria tinha médico e capelães e distribuía medicamentos aos pobres. Tinha uma campaínha para chamar os irmãos e um pendão ou painel, tendo pintado dos dois lados a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia. Para transportar os mortos havia andas ou esquifes.
O compromisso da Misericórdia de Lisboa inclui nas duas disposições as necessárias para a realização de todas as formas de assistência, garantindo a boa administração dos seus bens e o espírito de justiça máximo com que a assistência era praticada, com a maior meticulosidade na escolha dos irmãos, do Provedor e dirigentes de cada ano, seleccionados entre todas as classes sociais, na mais racional e séria democracia.
O sentimento de solidariedade cristã criado pela Misericórdia de Lisboa, espalhou-se pelo País inteiro e encontrou na histórica vila de Almeida, uma guarida enternecedora.
Assim se fundou a Misericórdia de Almeida, com alvará real e o texto dos seus estatutos foram tirados do compromisso em que se regia a Misericórdia de Lisboa.